TEXTO DE APRESENTAÇÃO DA EXPOSIÇÃO “DO FIO À COSTA”

Com a exposição do Fio à Costa tem o público a oportunidade de conhecer a actividade de uma pequena empresa alentejana de cutelaria que nasceu e se desenvolveu num local improvável, a aldeia da Azaruja, graças à visão e ao espírito empreendedor de gente de ofício. Sem dispor de condições aparentemente favoráveis à produção de objectos em ferro – matérias-primas, energia e transportes baratos – a empresa que fabricava as chamadas facas corticeiras ou Facas Franzina prosperou e sobreviveu como uma pequena empresa familiar durante três gerações ao longo do século XX, vindo a conhecer dificuldades com a integração europeia, acabando por soçobrar devido sobretudo à concorrência asiática no quadro da nova economia globalizada.

Na origem da empresa terá estado André Franzina, operário corticeiro (recortador), que teria tido a ideia de aproveitar as facas corticeiras inutilizadas pelo desgaste no trabalho dos corticeiros como matéria-prima para fazer facas de cozinha. A pequena empresa doméstica encontrava junto dos patrões das fábricas e dos próprios trabalhadores o seu mercado abastecedor e a sua clientela, trabalhando por encomenda e vendendo os seus produtos nas feiras da região. Estabeleceu-se assim um estreito vínculo entre a actividade industrial corticeira na Azaruja e na região, vocacionada para os mercados consumidores dos grandes países industrializados, e a marca Franzina. Seguindo a memória familiar, a empresa afirma-se nos anos ‘40 com Joaquim Franzina, que na altura era operário fabril na CUF no Barreiro, graças à diversificação permitida pela pequena escala, produzindo um número crescente de tipos de produtos. No seu percurso, encontramos fabricos de 10 tipos distintos de facas de cozinha, três de cortiça, uma de mel, outra de sapateiro, duas de matança para porco e borrego. Além disso, a fábrica produzia cutelos e machados de cozinha, facas para talho e para corte de presunto. Fabricou também o canivete de uso pessoal, inseparável do trabalhador rural alentejano. O crescimento assente na diversificação, na qualidade do produto com base na pequena escala marcou os anos ‘60 e ‘70 do século passado, chegando a empregar cerca de 20 a 22 trabalhadores (homens e mulheres) e a exportar para os Estados Unidos da América, Suiça, Alemanha, França e Espanha. Num catálogo elaborado pelos seus herdeiros, a empresa anuncia-se como uma empresa exportadora, “fabricante de facas para todos os fins” e tendo referência identitária, o facto de produzir “a original Faca Corticeira”. É que a qualidade dos seus produtos estava a conduzir à concorrência de empresas que produziam cópias.   

A empresa beneficiou da electrificação (a água era proveniente de um poço) mas também da inovação no fabrico de máquinas-ferramenta por Joaquim Franzina. Entre estas encontramos máquinas de amolar e de cortar destinadas a imprimir mais rapidez no processo de fabrico graças à poupança de trabalho (labor saving process). Fundamental foi também a contratação de um amolador talentoso que viria a desposar uma das suas filhas. A maioria do pessoal contratado na região formou-se na empresa, aprendendo fazendo.

No entanto, as facas Franzina, feitas na fábrica predominantemente com os cabos em madeira de oliveira da região e com aço importado a partir dos anos ‘60, sofriam cada vez mais com a concorrência que usava novos materiais. A cutelaria doméstica afirmava-se agora através do design moderno, dos cabos de plástico coloridos e de novos materiais de corte, produtos mais apelativos para um público urbano consumidor que valoriza a forma estética em detrimento da função. Normas jurídicas estabelecidas pela Comunidade Económica Europeia impuseram nos talhos e na indústria as facas com cabos de plástico.

As facas corticeiras da Azaruja apareciam agora às novas gerações como “tradicionais”. Comercializadas nas feiras e através de vendedores ambulantes, pareciam filhas de um mundo rural alentejano que estava a desaparecer. Foi neste período de declínio que na empresa trabalhavam apenas as pessoas da família. A gestão foi assegurada pela promogénita de Joaquim Franzina desde o seu falecimento no ano de 1974. Graças às herdeiras e respetivos parceiros a empresa consolidou o seu fabrico e a sua marca nacional que foi registada como JOAQUIM ANDRÉ SILVA FRANZINA, HERDEIROS, LDA.

A exposição invoca assim a memória desta pequena empresa da Azaruja vinculada ao trabalho na cortiça que, em três gerações familiares, criou uma marca de sucesso que passou a integrar a lista dos produtos “típicos”, marcando um tempo no Alentejo e no país. A sua mostra revela a importância do empreendedorismo e da inovação nas pequenas empresas.

Está, por isso, de parabéns a Fábrica Catalã por ter organizado e recolhido materiais sobre uma empresa cujo percurso histórico merecer ser conhecido e patrimonializado.

Paulo Eduardo Guimarães

Historiador

(Universidade de Évora)

Voltar "Do Fio à Costa"