"A BOLA VERMELHA NÃO É REAL

INSTALAÇÃO DE PAULO SCAVULLO

A Bola Vermelha não é real, livro-instalação, 2021.

Ao olhar para muitos dos fotogramas que exponho neste livro a que dei o nome A Bola Vermelha não é real procurei olhar para muitas das histórias que li e reli em criança e com as quais levitei, saí de mim numa ausência sem velocidade e fim. Senti essa necessidade quase impulsiva de ali regressar como quem retorna a uma casa abandonada repleta de fantasmas e aos quais não pode escapar.

O labirinto desta infância, esse lugar por vezes de difícil acesso e obscuro, é afinal aquilo que questiona muitas vezes o presente, até nos libertarmos de todas as imagens que foram adormecendo em nós. Muitas delas ficarão para sempre connosco, as mais inquietantes e vampíricas, que temos de alimentar e nos obrigam a procurar verdades e desvendar mistérios sobre algo anacrónico a que chamávamos histórias encantadas. E é nesse campo de batalha que se situa o meu olhar, esse regresso imprescindível à casa antiga.  

Procurar ver numa realidade ampliada essas verdades e segredos escondidos é obrigar-me a reajustar a minha memória, também ela construída e condicionada, escavando a fundo, fugindo e reacendendo obsessões sobre aquelas imagens que estavam já em estado de erosão, gastas de tanto terem sido absorvidas, recriadas e reposicionadas pela minha imaginação.

Neste livro, onde reagrupo fotogramas de histórias diversas, de clássicos infantis, retiradas de discos ópticos “view master”, um brinquedo muito popular entre os anos 60 e 80, intervenho em imagens isoladas adicionando-lhes elementos exteriores à sua própria condição narrativa, acentuando a  sua própria fragmentação, destituindo-a do seu poder narrativo original, denunciando ou exacerbando aquilo que escondem, não procurando reencontrar o simples e maravilhoso mundo encantando que me adormeceu mas a dissimulada condição grotesca, ambígua e maquiavélica ou até mesmo um certo erotismo de diversos genéros que ali se escondem, de modo a fixá-los e expô-los num outro tempo e numa nova condição.

Neste livro de artista, um livro aberto em caixa de luz dupla, duas páginas numa estrutura que lembra os comics ou as histórias aos quadradinhos, alinham-se tiras que lembram as vinhetas da BD, sem organização ou lógica narrativa, num registo fracturante e ruidoso, com o recurso à justaposição de diferentes elementos que, sobrepostos, criam um efeito de transparência que vive da luz e do mistério que esta acentua, produzindo como que um efeito cinematográfico, mas sem imagens em movimento. Numa das páginas, há um círculo vermelho e há também um elemento que nos permite aumentar essa realidade e descobrir o pormenor, uma lupa, também ela sinalizada com um transparente círculo vermelho. 

A completar este livro-instalação, A Bola Vermelha não é real, temos uma imagem em formato ampliado, uma fotografia em transparência (duraclear) que não está no livro e que nos mostra uma criança que lê, escondida, provavelmente num sótão. Lê um livro onde habitam seres diabólicos. Essa criança talvez assustada está num estado de perplexidade e tem sobreposto no rosto um círculo transparente vermelho.

Temos aqui um elemento de ligação que transita entre as diferentes peças: esse círculo, talvez um sinal que mantém em aberto esta condição e que nos conduz a um fim, talvez a uma ampliação da nossa realidade.

Partindo da ideia de uma certa portabilidade do livro, já que o fotograma gigante é fixado por luzes suspensas e retroprojectado com luz, mostra-nos também que o livro nos aproxima ou distancia daquilo que podemos ver, rever, repensar ou destruir.

Essa espécie de altar onde se fixa com luz a grande imagem é um momento de verdade, talvez seja uma não resposta ao que procuramos desvendar.

 

Paulo Scavullo, 2021.

Um círculo vermelho

"A bola vermelha não é real" (2021) é o título do livro-instalação de Paulo Scavullo, que foi lançado, anteontem, na Fábrica Catalã, na Azuruja, localidade situada entre Évora e Estremoz.

A instalação é composta por dois elementos: um livro de artista e uma fotografia em transparência (duraclear), que, na Fábrica Catalã - segundo o artista pode ter outros modos de apresentação - surgia suspensa, segura por quatro esticadores que incluem tubos com uma luz entre o lilás e o rosa.

O livro de artista, apresentado, numa mesa, diante desta imagem, é uma caixa de luz dupla com vinte pequenas transparências e, no lado esquerdo, no centro da "página", o círculo vermelho a que faz referência o título. A completar esta obra, uma lupa que, no meio, tem um outro círculo vermelho: a intenção é de ver cada imagem ampliada e banhada por esta cor, como se cada cena proposta se transformasse num instantâneo gore.

As imagens-colagem de Paulo Scavullo partem de histórias infantis, como contos de fadas ou fábulas, retiradas de discos ópticos "view master", depois trabalhadas pelo artista, que inclui texto, cor e outros elementos através dos quais procura criar uma distância relativamente à narrativa original.

A bola vermelha surge ainda, na imagem ampliada, sobre o rosto de uma criança que olha para nós, numa suspensão de um instante de escrita. É nesse intervalo entre transparências e ocultações, que estes trabalhos podem ser lidos: fragmentos de imagens, de textos, de narrativas clássicas, materializam memórias relacionadas com instantes vividos na infância, agora associadas a uma interpretação retrospectiva desses episódios estilhaçados pelo tempo.

Não será por acaso que a bola vermelha está próxima do círculo vermelho, esse signo do interdito, sobretudo associado a filmes que passavam na televisão. Lembre-se ainda que muitas das histórias de encantar foram inicialmente escritas para adultos: "É por isso que muitos dos primeiros contos de fada incluíam exibicionismo, estupro e voyeurismo. Numa das primeiras versões do 'Capuchinho Vermelho', a avó faz um striptease para o lobo, antes de ir para a cama com ele." (Sheldon Cashdan).



Oscar Faria (critíco de arte), in Instagram, 6 fevereiro 2023.